“A minha experiência como mulher dentro da Ananda Marga é horrível. Se você começa a se sobressair um pouco mais, te boicotam. Estou te falando de 30 anos de experiência. Se você faz alguma coisa, se você chama atenção, eles queimam o teu filme”. O depoimento de Kalyanii Souza, de Curitiba, PR (Brasil), impacta quem conhece a filosofia de Ananda Marga. Anandamurti lutou veementemente pelos direitos e pelo reconhecimento do valor da mulher – não só na Ananda Marga, mas na sociedade como um todo. Em uma de suas várias falas sobre o tema, ele afirma:

Somos pela criação de uma consciência social poderosa, dinâmica e emergente, especialmente entre as mulheres, de modo a que elas se inspirem a se erguer, abolir os dogmas, aniquilar todos os símbolos de escravidão e inaugurar uma nova era de cooperação coordenada e gloriosas realizações. Que as mulheres sejam a vanguarda de uma nova revolução de que a humanidade precisa para chegar a um amanhã glorioso” (Few Problems Solved, part 9 in Pensamentos de P.R. Sarkar, p.250)

Portanto, embora existam mulheres que viveram uma história positiva com a Ananda Marga, experiências com a de Kalyanii e de outras mulheres revelam a necessidade de revisar as contradições entre a filosofia proposta por Ananda Marga e a sua prática cotidiana. Uma contradição que acontece, de fato, na sociedade como um todo.  Como forma de ouvir as vozes dessas mulheres e investigar essas contradições, o segundo capítulo da série “universalismo” aborda o papel das mulheres dentro da Ananda Marga, focando na experiência de algumas margiis brasileiras, que têm refletido e atuado com o tema do protagonismo feminino.

Em princípio, Ananda Marga propõe uma ideologia universalista que se propõe à inclusão de todos, a não reproduzir complexos de inferioridade e superioridade e a defender o direito de homens e mulheres terem as mesmas condições de evoluir física, psíquica e espiritualmente. Entretanto, dentro de uma sociedade com valores arraigados que vão na direção oposta a tudo isso, a prática das relações entre margiis e acaryas, bem como a estrutura de poder dentro das instituições de Ananda Marga, revelam as dificuldades em seguir esse ideal.

Para o Acarya Maheshvarananda Avadhuta, dos EUA, os ensinamentos de Anandamurti são universalistas, mesmo que nem todos os margiis e wholetimers (WTs, acaryas renunciantes), o sejam. “Eu não pertenceria a uma organização na qual irmãs e monjas não são vistas como espiritualmente iguais aos irmãos e monges, e merecedoras de oportunidades iguais. Está em nossas mãos pressionar para que as mulheres tenham posições de poder igualitárias”, explica.

Renu (Renata Camargo), que reside em Botucatu, SP (Brasil) acredita que, por ser uma ideologia vinda da Índia, um país que tem uma história de profunda subjugação das mulheres aos homens, o “arquétipo da religião indiana” se estabelece como traço cultural na Ananda Marga, apesar da proposta universalista. “Eu faço parte de movimentos de mulheres na sociedade civil e eu acho muito mais fluido falar de mulher na sociedade civil do que dentro da Ananda Marga”, diz. Segundo Dharma Mitra (Patrícia Reis), residente de Porto Alegre, RS (Brasil), “temos um caminho longo a avançar. Precisamos colocar na pauta o ‘não – lugar’ que as mulheres, em meu ponto de vista, ainda estão em Ananda Marga. E isso tem que ser discutido junto com os homens também, nos retiros, nos grupos. Temos vários exemplos de mulheres fortes, que fazem trabalhos incríveis, didis e margiis, mas ainda nossas maiores lideranças são homens”.

Esta desigualdade, não existe somente nos lugares de poder, mas também afeta as práticas espirituais. Porque, se as mulheres ficam com a maior parte das tarefas domésticas e ainda trabalham fora, elas têm menos oportunidades de se dedicar à prática espiritual. “Não há um pensamento social: apesar da nossa cerimônia do batizado ser clara sobre todos serem responsáveis por aquela criança que ingressa na comunidade, depois, na prática, isso não acontece. A gente não se preocupa coletivamente, salvo raríssimas exceções”, afirma Renu.

Além da sobrecarga de trabalho, existem outras questões sérias, como a violência doméstica. Segundo Renu, a posição da instituição é a de, muitas vezes, culpabilizar a mulher. “E o que eu vejo dentro da Ananda Marga e de outras religiões é que existe um incentivo para que as mulheres se mantenham caladas, que elas perdoem a violência sofrida. Não há uma cultura organizacional que incentive as mulheres a denunciarem, a não aceitarem isso, o que é muito sério, porque quando chega à violência física, normalmente já existem diversas outras violências. Essa cultura vai contra a própria ideologia do Sarkar, que fala que o perdão é algo subjetivo, de que você não deve querer o mal da outra pessoa, mas no nível objetivo o perdão é um pecado, porque há que se reparar as injustiças. Então, enquanto espiritualistas tântricos a gente não pode coadunar com violência, sobre esse pretexto do perdão”, explica.

Para que estas e outras questões tenham o seu devido lugar de respeito e acolhimento, um grupo de mulheres organizadas em cooperação coordenada está se formando. Existe uma página (veja aqui) e haverá um retiro em Botucatu de 10 a 14 de outubro. Renu, que está a frente deste movimento, acredita que os valores femininos devem ser colocados no sistema, e que as mulheres e os homens podem acessar esses valores. A ideia de que o feminino só pertence à mulher e o masculino ao homem “é uma construção do patriarcado: existe o feminino e masculino nos dois e por questões culturais e históricas da mulher desenvolveu sim, certos atributos pela função de gestar, do cuidado”, diz.

Gaotami (Carla Arantes de Souza) traz uma outra visão sobre esta união das mulheres em grupos. Segundo ela, este movimento é benéfico, pois as mulheres têm muito a contribuir: “os problemas que a gente vive não vão ser solucionados com força, vão ser solucionados com muita sensibilidade e intuição, e eu acho que a gente tem muito esse potencial. A gente tem possibilidade de construir algo novo. As mulheres têm essa possibilidade um pouco maior, na medida em que a gente não está nesses espaços de poder e a gente nem gosta muito de disputar esses espaços. A gente está interessada em fazer uma mudança mais subversiva”. Ela diz não acreditar em oprimido e opressor, vítima e algoz e portanto, acha que este grupo de mulheres deve tomar cuidado para não excluir os homens. “A gente não se cura se nutrindo de raiva, a cura não acontece assim” diz.  Por outro lado, Renu acredita que as mulheres possam e devam estar nos lugares de poder, sim. “Acredito que uma revolução tem que acontecer nas periferias do sistema, sim, mas dizer que as mulheres não querem disputar o poder e estar nos espaços de poder, não concordo”, afirma Renu.

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Pela Redação

Foto: Tayhu Grehs